v. 73 n. 02 (2019): FRANCISCO E O SULTÃO (II): 800 anos de um encontro histórico

Prezado (a) leitor (a) Paz e Bem!
Neste segundo número da Revista Grande Sinal deste ano de 2019 optamos por continuar oferecendo aos leitores reflexões relacionadas ao diálogo inter-religioso, explorando ainda o rico tema do encontro de São Francisco de Assis com o sultão. A opção se justifica a partir da constatação da imensa gama de possibilidades de reflexões e interpretações que o assunto suscita ao nosso tempo. Vivemos num mundo carente de humanismo. Corremos o risco de nos deixarmos levar pela onda de intolerância, radicalismo e rispidez que parecem imperar nas relações humanas. Francisco de Assis e sua contínua “sede de humanidade”, particularmente vislumbrada no encontro com Malik al-Kamil, pode nos oferecer balizas que nos indiquem por onde caminhar em busca de tempos menos sombrios. O fato em si, da ida de um monge pobrezinho e desarmado ao encontro de um dos homens mais poderosos do Oriente, que sintetizava em si toda a violência das cruzadas, causou estupor aos seus contemporâneos. Com o passar do tempo, o evento foi sendo “reapropriado” das mais diversas maneiras, de acordo com as intenções dos que liam os fatos e os interpretavam a partir de seus interesses e opiniões. Certamente nós também não estamos isentos de fazer nossas próprias interpretações e tirar conclusões a partir do nosso contexto. Mas isso apenas confirma a riqueza de possibilidades e a importância deste encontro, para além de seu tempo.
Os vários relatos elaborados “a posteriori” ao encontro de Francisco com o sultão mostram-no ora como mártir, ora como missionário, ou orador ou apóstolo da Igreja primitiva. Chega-se à conclusão de que “Francisco... parece estar fora dos esquemas e sua experiência cristã impossível de se encaixar nos cânones da perfeição então vigentes”. A partir desta constatação, o professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, frei Giuseppe Buffon, partilha conosco o artigo intitulado Francisco, o louco de Deus. O próprio Francisco afirmara no início de sua conversão que queria ser “um novo louco no mundo”. Quanto à missão, especialmente em relação aos “infiéis”, em que consiste essa “loucura” de Francisco? É o que responde o autor em sua exposição.
A cortesia, o respeito ao outro, a singeleza de vida eram características marcantes da personalidade de Francisco de Assis. A violência nas batalhas entre cristãos e muçulmanos, que vivenciou pessoalmente, bem como os jogos de interesses escusos, que justificavam o massacre e o saque a qualquer preço, lhe deixaram profundas marcas na alma. Mas lhe impressionaram também a profunda religiosidade e piedade do mundo islâmico. O Padre Enio Marcos de Oliveira, no artigo intitulado Francisco de Assis, Ternura e Profecia, ou o natal em Greccio discorre sobre o impacto da experiência de Francisco na Terra Santa, que se expressou através de um gesto que marcou a história da piedade cristã: o presépio em Greccio. Segundo o autor, para Francisco “o mundo é o nosso claustro”, e “toda a terra é Santa, e Greccio é a nossa Belém”. Ora, a partir dessa perspectiva, as cruzadas deixavam de ter sentido, pois, se toda a Terra é Santa, não fazia mais sentido a guerra, o derramamento de sangue e a morte por amor aos lugares santos. Com este gesto Francisco reafirma que “a guerra, nenhuma guerra agrada a Deus, pois Jesus se fez pequeno na singeleza do presépio e assim santificou toda a terra e todos os homens e todas as mulheres”.
No Capítulo das Esteiras de 1217, Francisco de Assis enviava os primeiros frades em missão à Terra Santa. Desde então, entre vicissitudes históricas, desafios e fidelidade à missão, os filhos do “poverello” buscam, fiéis ao espírito do fundador, e seguindo os ditames do Evangelho, ser instrumentos de diálogo, respeito e tolerância não apenas na Terra Santa, mas em todo o Oriente. Frei Jean Ajluni nos apresenta um relato histórico sobre esta presença tão significativa, mas destaca também a importância da atuação dos frades na Terra Santa hoje, ocupados em cuidar não apenas das “pedras” históricas, mas, principalmente, das pedras vivas, que são as pessoas. Nesse sentido, destaque-se a presença franciscana especialmente nas zonas de guerra, como a Síria, mas também na acolhida e cuidado dos refugiados. Como afirma o autor, “é fato admirável o trânsito que os franciscanos possuem entre os países onde realizam sua missão, e as pontes que constroem e mantêm principalmente entre a população cristã do Levante, em lugares que nem mesmo grandes organismos internacionais conseguiriam fazê-lo”. A Terra Santa também é lugar privilegiado para o estudo das origens de nossa fé, através dos centros de estudos mantidos pelos franciscanos, o Studium Biblicum Franciscanum e o Studium Theologicum Jerosolymitanum.
A representação iconográfica do encontro de Francisco com o sultão teve grande sucesso ao longo da história. Os artistas, cada um a partir de sua especialidade e de seu contexto, procuraram expressar o modo como interpretavam o evento. O artigo de Adriano César de Oliveira, O encontro de São Francisco com o sultão Malik al-kamil: das representações pictóricas à ética da hospitalidade, propõe um itinerário de reflexão sobre o modo como a expressão pictórica pode nos interligar à espiritualidade e aos valores que pretendem expressar. Nem sempre estes dados são imediatamente perceptíveis. É preciso uma “chave de leitura” para poder adentrar nos ricos meandros que a arte encerra.
Muitas instituições tradicionais encontram-se em crise ou transformação, incluindo-se aí a vida religiosa. Diminuem os ingressos, as comunidades envelhecem, as estruturas parecem engessar as possibilidades de renovação. Na sessão Reflexões Frei Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, nos oferece uma instigante reflexão, intitulada “Revitalizar a vida religiosa hoje: desafios éticos e Leadership”. Segundo o autor, corremos o risco de, em nome de um passado meritório e grandioso, não conseguirmos mais dar respostas pertinentes às grandes questões da atualidade, ou de fazermos pequenos ajustes, para se manter tudo como está. É preciso coragem para se transformar e se renovar, com esperança e à luz da fé. Mas para mudar é preciso também liderança. Que tipo de liderança? A vida fraterna é o caminho. Como afirma o autor, as pessoas esperam dos religiosos que sejam “expertos de relações humanas, e que suas comunidades sejam exemplo de interculturalidade harmoniosa”. Nas Reflexões trazemos também um artigo de Magaly Oberlaender, sobre a Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro. Uma das mais belas igrejas da “cidade maravilhosa”, mas pouco conhecida. A autora detém-se não apenas sobre a importância artística e cultural deste monumento ímpar, mas também sobre seu protagonismo na evangelização na cidade do Rio de Janeiro. Uma reflexão de frei Wagner José da Rosa, sobre O descanso litúrgico na Encíclica Laudato Si’, e a segunda parte do artigo de frei Walter de Carvalho Júnior sobre A vocação única (laical), do frade menor, fecham as Reflexões.
Temos em mãos, através de nossos colaboradores, muitos temas que podem qualificar nossa vida pessoal, espiritual e pastoral. Que possamos aproveitar bem dos textos oferecidos. Boa leitura!
Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm
Redator