v. 77 n. 02 (2023): ESPIRITUALIDADE, JUSTIÇA SOCIAL E SOLIDARIEDADE

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Paz e Bem!

 

ESPIRITUALIDADE, JUSTIÇA SOCIAL E SOLIDARIEDADE

 

No início do mês de outubro de 2023 a Igreja testemunhou um dos momentos mais importantes de sua caminhada nas últimas décadas, protagonizado pelo Papa Francisco, com a abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade. Com o evento inaugurado em Roma no dia 04 de outubro, dia do Santo cujo nome o Pontífice do “fim do mundo” escolheu como modelo e inspiração, Papa Francisco convoca a todos os cristãos a serem homens e mulheres de esperança, de olhos fitos em Jesus e em sua missão. Como afirmava no discurso de abertura: “Não queremos glórias terrenas, não queremos parecer bem aos olhos do mundo, mas fazer-lhe chegar a consolação do Evangelho, para testemunhar melhor, e a todos, o amor infinito de Deus”. Como tem afirmado outras vezes, em várias oportunidades, o Papa insiste numa Igreja hospitaleira, de portas abertas, de diálogo, de acolhida.

Como corresponder ao mandato evangélico, afirmado pelo Papa, de “testemunhar o amor infinito de Deus” no atual momento de nossa história? Se fizermos uma avaliação um pouco mais crítica da realidade que nos cerca, em todos os âmbitos da vida, constataremos que não está sendo tarefa nada fácil para a Igreja, para os cristãos e para os homens e mulheres de boa vontade em geral, sermos testemunhas do amor. Mas, para além de elencar as desgraças e conflitos, o Papa propõe o caminho da esperança. Se afinarmos os ouvidos, podemos quase ouvir os ecos das palavras do querido Papa João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 1962, quando exorcizava os “profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”.

Certamente não podemos ser ingênuos, ignorando os terríveis conflitos que marcam nosso tempo, as tremendas injustiças sociais, que geram legiões de miseráveis, às voltas com o desemprego, a fome e a violência nas periferias das metrópoles. Como ignorar as multidões de imigrantes e refugiados, crianças, idosos, mulheres, que tentam escapar da miséria ou da guerra, que mostram no rosto a imagem de um Deus desfigurado pelo sofrimento, pelo medo, pelo abandono? Do mesmo modo, não podemos fechar os olhos para a terrível crise climática, com as trágicas consequências que testemunhamos a cada dia, atingindo principalmente os mais vulneráveis. A mãe terra pede socorro. Diante dessa realidade, como ser anunciadores da esperança, da Boa nova, sem nos deixarmos levar pelo pessimismo, pelo desalento, mas também não abandonando a profecia, denunciando os projetos de morte, a iniquidade, as desigualdades? Talvez não tenhamos respostas prontas. Na verdade, o que vivemos hoje é o que o Papa Francisco tão bem denominou de “crise antropológica”. É essa a raiz de tantas outras crises que marcam nossos tempos. Mas algumas pistas podem nos ajudar a encontrar luzes em meio a tanta escuridão.

Neste número da Revista Grande Sinal, continuamos com a discussão sobre a importância de uma espiritualidade que se manifeste no engajamento social, no cuidado com as pessoas, na defesa da vida, no cuidado com o planeta, com a casa comum. Vivemos numa sociedade onde a religião parece cada vez mais se distanciar da prática do amor. A dicotomia entre fé e vida parece que nunca foi tão grande. Há um verdadeiro estranhamento entre as duas realidades que, na verdade, deveriam se completar. Vivemos uma inversão de valores. Quando ouvimos alguém afirmar que é uma “pessoa de bem”, temos até um “arrepio na espinha”, dada a deturpação que esta expressão sofreu nos últimos tempos, identificando pessoas que “de bem” não têm nada. Ancorados num fundamentalismo tacanho, geralmente são pessoas que, em nome de Deus, da moral, da família e dos bons costumes, são arautos da intolerância e do ódio, defendendo as pautas mais iníquas e desumanas, atacando as minorias, espalhando fake news.

Diante da crise dos valores, nestes tempos de “mudança de época”, tão carente de sentido e de referenciais, talvez nunca se tenha falado e buscado tanta espiritualidade e religião como hoje. Assistimos a cada dia o surgimento de “gurus” religiosos, católicos ou não, vestidos a caráter, onipresentes nas mídias de todo o tipo, que oferecem fórmulas mágicas e o caminho mais curto e seguro para se chegar ao Paraíso. Alguns insistem na doutrina, outros são radicais na moral, quase todos incutem o medo do juízo final, fazendo mais propaganda do inferno e do demônio do que de Jesus. A teologia da prosperidade nunca foi tão próspera, em todas as denominações cristãs. Profetas de uma espiritualidade desencarnada, desvinculam fé e espiritualidade da vida cotidiana, concreta, apregoando uma religiosidade centrada no cultual, no legalismo, em detrimento do amor, das relações humanas saudáveis, do cuidado com a vida.

Certamente não é esta a proposta de Jesus. Esta não é a religião do Evangelho. Evangelizar não é, em primeiro lugar, exigir uma prática ritual, transmitir doutrina ou insistir em comportamentos morais. Embora também sejam elementos constitutivos de toda prática religiosa, antes de tudo o mais importante é focar no essencial: a adesão à proposta de Jesus. Os homens e mulheres que aceitaram o convite de Jesus de segui-lo fizeram, sobretudo, a experiência de conviver com ele como um amigo, como alguém que lhes abriu possibilidades novas, que lhes permitiu sonhar com novos horizontes que transformaram suas vidas. Jesus revelou-lhes a imagem de um Deus muito próximo deles, interessado em seus problemas e compassivo com suas fragilidades, cheio de misericórdia. Profundamente contagiados e transformados por essa mensagem, os discípulos não hesitaram em deixar tudo, colocaram-se no seguimento e foram capazes de transmitir sua mensagem por todo o mundo, até a entrega da própria vida.

A vivência de uma espiritualidade realmente transformadora, de uma religiosidade encarnada na realidade, que seja de fato anúncio do Reino de Deus, deve ter, como referência, esta experiência do encontro com a pessoa de Jesus, de uma vida transformada pelo seu Espírito. Não basta dizer que o Evangelho é Boa nova. É importante experimentá-lo e, sobretudo, vivê-lo como boa notícia. Muito mais do que belas palavras, doutrinas, discursos elaborados, ou a preocupação com as estruturas e com o número, é sobretudo o testemunho de vida que atrai e cria discípulos.

Numa sociedade marcada pela força da imagem, fica cada vez mais evidente a importância dos gestos. No caso do anúncio do Evangelho, precisamos de gestos coerentes, de atitudes que comuniquem, que inspirem, que toquem fundo no coração das pessoas, porque inspirados no estilo de vida de Jesus. O anúncio da Boa nova hoje, como outrora no passado, necessita de pessoas que sejam testemunhas deste encontro pessoal com Jesus, que tenham sido transformadas pelo encontro íntimo com ele, convictas de que é possível criar uma sociedade diferente, transformada a partir dos valores do Reino.

Viver e agir hoje, como Jesus viveu e agiu, é o caminho para o anúncio. Isso passa pela acolhida calorosa e carinhosa de cada pessoa, dos excluídos da Igreja e da sociedade, sem julgamento, independentemente de sua situação de vida. Passa também pelo empenho na construção de relações humanas que sejam geradoras de cuidado e de vida, na busca de uma sociedade mais feliz, mais humana para todos. É o antigo e sempre atual arquétipo de vivência religiosa que deve ser nosso referencial: Fé e vida. Uma fé que se expressa em todos os âmbitos da vida, no engajamento político pela transformação da realidade, na defesa incondicional da liberdade, da dignidade, dos valores e direitos de cada pessoa. São realidades que devem fazer parte da vida de todos aqueles e aquelas que um dia se propuseram a trilhar os caminhos ensinados e trilhados por Jesus.

Os terríveis acontecimentos que marcaram o Brasil nos últimos anos, no campo da administração pública, fizeram com que se tornasse comum uma certa demonização da política, como se fosse um campo pouco ou nada conveniente para a atuação de cristãos. O professor Oton da Silva Araújo Júnior, no seu artigo intitulado “Fé e Política: um baú de coisas novas e velhas”, reconhece que tratar deste tema é adentrar num verdadeiro labirinto, justamente em função das várias nuances que esta relação costuma trazer à tona. O autor destaca que a política tem sim tudo a ver com o serviço em prol do Reino, sem se prender a pautas exclusivamente eclesiais. É importante resgatarmos o genuíno sentido da política, como atividade pertinente aos cristãos, que se destina à formação de uma sociedade mais justa e fraterna, na busca do bem comum, mas sem confundi-la com a defesa de interesses pessoais, mesquinhos, confessionais.

Neste ano de 2023 a Ordem Franciscana está celebrando os 800 anos da aprovação da Regra Bulada (aprovada), escrita por São Francisco de Assis para seus seguidores. Um código de vida que, passados oito séculos, se revela atual e inspirador na vivência do seguimento de Jesus. O professor Marco Bartoli, um dos maiores especialistas sobre Santa Clara e sobre franciscanismo, professor e pesquisador de importantes instituições acadêmicas na Itália, compartilha conosco um texto sobre a Regra de Santa Clara de Assis, fazendo uma comparação entre alguns aspectos comuns às duas formas de vida, que nos indicam a importância de buscar uma vivência do Evangelho que tenha reflexos na vida cotidiana. Entre os elementos que se destacam nas Regras de Clara e de Francisco, o autor sublinha a observância do Santo Evangelho, a obediência ao Papa e à Igreja Romana, a opção pela pobreza e a prática do trabalho. São, segundo Marco Bartoli, elementos essenciais que indicam a via para a vivência do projeto do Reino, e que sintetizam o modo como a proposta de vida de Francisco e Clara, cada um com a sua Regra, conseguiram se tornar uma verdadeira luz e referência para todos os tempos, até os dias de hoje.

Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo, é considerada uma das maiores escritoras da literatura nacional. O professor Altamir Célio de Andrade nos brinda com uma instigante reflexão, intitulada “O Evangelho segundo Carolina de Jesus ou a gastronomia da falta”. Trata-se de um exercício de literatura comparada, recorrendo a alguns extratos da obra da referida autora, analisados à luz de alguns textos bíblicos e de consagrados autores nacionais. A partir da experiência de pobreza vivida por Carolina de Jesus, descrita de modo tão pungente em seu diário (Quarto de Despejo), é possível fazer uma relação com os pobres de todos os tempos. A partir da simbologia da “mesa”, farta ou, mais frequentemente vazia, seja no bairro paulista do Canindé dos anos 1950, ou nos tempos bíblicos dos profetas, é possível fazer uma leitura da desigualdade social de todos os tempos, que gera a fome, priva as pessoas de sua dignidade, e marca a vida de grande parte das populações do mundo inteiro. Como afirma o autor: “Em Carolina podemos salientar que os pobres de hoje enfrentam situações muito semelhantes aos de outrora, uma vez que continuam preteridos, seja por sua cor, o lugar onde moram, o papel que catam (ou desempenham) e a educação que não têm”.

O Sefras, Serviço Franciscano de Solidariedade, constitui uma das expressões da ação social da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. A Assistente Social e docente Rosângela Pezoti, no artigo intitulado “Promover a justiça sócio ambiental: missão do Sefras – Ação Social Franciscana”, nos propõe uma reflexão sobre as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes na atualidade, que geram os milhões de deserdados que vagam pelas ruas e esquinas de nossos centros urbanos. Esta situação foi enormemente agravada pela Covid-19. Este é o contexto de atuação do Sefras, que busca, através dos trabalhos sociais, trazer um pouco de alívio, humanidade e esperança a tantos irmãos e irmãs descartados pelo sistema de morte. Como afirma a autora, o Sefras age oferecendo o cuidado imediato, quando é o caso, sem deixar de promover a conscientização quanto aos direitos e ao desenvolvimento das potencialidades, mas também investindo na atuação política, em ações de enfrentamento das injustiças, para a transformação da sociedade.

Qual espiritualidade permite o melhor seguimento de Jesus nos dias de hoje? A partir deste questionamento, o professor Celso Carias nos conduz por um itinerário que nos permite perceber a importância de uma fé e de uma espiritualidade que seja comprometida com a vida. Já no título do artigo, “Solidariedade política: dimensão essencial da espiritualidade cristã”, podemos intuir a necessidade de uma fé que se exprima através da prática do amor, do cuidado, da partilha. O autor nos propõe vários textos dos Padres da Igreja, que denunciaram uma fé desencarnada, alienada e alienante, ignorando o sofrimento dos pobres que vivem ao nosso lado. O caminho proposto é o caminho de Jesus, que tantos homens e mulheres percorreram, unindo fé e vida, transformando a prática religiosa em ação concreta em defesa da vida.

A família franciscana do mundo inteiro está celebrando, desde 2019, uma série de jubileus, de eventos que foram fundamentais na vida de Francisco de Assis, e que continuam a inspirar e guiar seus seguidores nos dias de hoje. Um destes eventos, como já acenado, é a aprovação da Regra Bulada, escrita por Francisco de Assis, que foi apresentada ao Papa e aprovada, no dia 29 de novembro de 1223. Numa reflexão intitulada “800 anos da Regra de Francisco de Assis”, o professor Aldir Crocoli traz à luz alguns elementos que podem ser referências na vivência do carisma de Francisco. Como ele afirma: “Toda a regra tem sempre um núcleo básico em torno do qual gravitam, quais satélites, valores de maior ou menor significação. Identificar este núcleo em qualquer regra é uma tarefa necessária para sua melhor vivência”.

Papa Francisco está colocando em evidência o protagonismo dos leigos, das mulheres, das minorias na Igreja. No Sínodo sobre a Sinodalidade, em Roma, leigos e leigas sentaram-se lado a lado com bispos, cardeais e monsenhores do mundo inteiro, contribuindo com suas experiências, sua vivência e suas ideias para os novos tempos da Igreja. E justamente da vivência parte a reflexão intitulada “No Princípio (?) era a Presença (desde sempre)”, que a professora Maria Zelia, Ministra Regional da Ordem Franciscana Secular de Belo Horizonte partilha conosco. Vindo de uma rica trajetória de vida, forjada nos movimentos sociais, no engajamento em defesa da vida e dos direitos, mas também numa vivência cristã e eclesial madura e consciente, Zelia nos indica algumas pistas para uma espiritualidade cristã e franciscana que, ancorada nos valores evangélicos, possa expressar-se no serviço, no cuidado, no compromisso em favor dos menores, dos pequenos, na defesa da dignidade e dos direitos. Como afirma a autora: “Impossível dissociar o ser pobre de Cristo do caminho da cruz. [...]. É este Cristo, humilde e crucificado, que se revela a Francisco e o torna um seguidor apaixonado. Iluminado pela revelação de que, no Crucificado, estão todos e cada um dos crucificados da Terra”.

Agradecemos a todos os colaboradores desta edição da Revista Grande Sinal. Acreditamos que os artigos aqui compartilhados, nas suas várias áreas de conhecimento, podem oferecer ricas e fecundas perspectivas de reflexão para nossos leitores, indicando possibilidades e caminhos possíveis na vivência de uma fé e uma espiritualidade engajada, que possa se transformar em sinais de vida e de esperança. Boa leitura a todos e todas!

 

Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

Redator

Publicado: 2023-11-09