v. 74 n. 01 (2020): ESPIRITUALIDADE E MÍSTICA NO SÉCULO XXI

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Prezado (a) leitor (a),

Paz e Bem!

Vivemos num mundo hiperconectado. Embora os fios e tomadas ainda façam parte de nosso cotidiano, bluetooth, wireless, cloudy (nuvens), tornam-se termos cada vez mais usuais e comuns em nossas relações e funções. Essa ausência física de fios, longe de significar um “desligamento”, ao contrário, nos conecta cada vez mais a um mundo virtual de intrincadas e espessas redes, das quais nem sempre nos damos conta, e das quais não podemos nos esquivar e nem controlar. Qualquer pessoa hoje percebe que vivemos num momento de grandes transformações. A comunicação tornou-se global. Somos o tempo todo bombardeados por informações de todos os tipos, de todas as partes do mundo, de modo tal, que não temos nem tempo de digerilas ou de assimilá-las. Celulares, computadores e tablets tornaram-se itens indis- pensáveis a uma vida dita “normal”. O antigo desejo de que as coisas pudessem ser resolvidas “num passe de mágica”, hoje torna-se realidade, quando quase tudo pode ser resolvido apenas com um toque na tela do celular ou num click do mouse do computador. Se é inegável o fato de que o avanço da tecnologia trouxe inúmeros ganhos para a humanidade, em termos de comunicação e acesso à informação, também não podemos fechar os olhos às consequências negativas de tais avanços, principalmente às camadas mais jovens da população. Ansiedade, depressão, isolamento e solidão, comportamentos antissociais, déficit de atenção, são apenas alguns dos sintomas gerados pela hiperconectividade. Sem falar no uso nocivo das redes sociais para manipular as mentes a serviço de interesses econômicos ou ideologias, como estamos presenciando através das fake news, principalmente a serviço de uma política nefasta e sem compromisso com a defesa da vida e dos direitos das pessoas e das criaturas.

Os especialistas no assunto afirmam que estamos apenas no início de grandes transformações, que vão gerar um novo tipo de ser humano. Já se afirma que, mais do que numa época de mudanças, vivemos numa “mudança de época”. Nesse sentido, poderíamos nos perguntar: neste novo mundo que aos poucos se configura, neste novo modo do ser humano se compreender, haverá lugar para a religião, para a mística, para as questões relacionadas ao espírito? Diante da onipresença e onipotência das máquinas (sem falar da onisciência), existirá espaço para o transcendente? E, se a resposta for positiva, como se relacionar com ele? Contemplação, meditação, mística não são conceitos exclusi- vos do cristianismo. Todas as denominações religiosas oferecem meios e instrumentos que possibilitem aos seus adeptos o contato mais profundo com o transcendente. É fato inegável que, seja qual for a deno- minação religiosa que alguém siga, as transformações acima citadas trazem consequências profundas sobre o ser humano como um todo. Nesse sentido, o modo de se relacionar com o divino e com o humano, suas expectativas religiosas, a busca de sentido ou a falta dele, serão vivenciados e elaborados a partir e dentro destes novos paradigmas.

Diante do cenário que aos poucos se descortina, com todas as suas imensas possibilidades e desafios, a redação da Revista Grande Sinal oferece a seus leitores algumas reflexões que podem ajudar a destacar alguns aspectos de uma vivência da espiritualidade para esta segunda década do século XXI.

“Vida mística no cotidiano: os rostos de Deus” é o título do artigo que nos oferece Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum de Roma, além de outras prestigiosas instituições. O autor desenvolve ampla pesquisa na área da ética no mundo das relações virtuais. Como o próprio título explicita, o texto se propõe, à luz da exortação apostólica “Gaudete et Exsultate” do papa Francisco, a refletir sobre uma espiritualidade do dia a dia. E nessa realidade cotidiana, encontrar o rosto de Deus que se desvela das mais variadas formas. Como afirma o autor, estamos todos imersos num verdadeiro “ecossistema midiático”, num mundo hiperconectado, cheio de apelos tecnológicos e de consumo. Mas o desejo de sentido, verdade e unida- de permanecem a aspiração mais profunda do ser humano. Cultivando a capacidade de saborear o valor do silêncio e da contemplação, assumindo uma mística do cotidiano, seremos capazes de encontrar Deus nos rostos dos seres humanos e em todas as criaturas.

Na linha da espiritualidade ecológica, Fábio Cesar Gomes faz uma profunda reflexão sobre o tema, intitulado: Itinerarium mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica. O Itinerarium é uma das obras mais conhecidas do franciscano São Boaventura, ilustre pensa- dor medieval do século XIII. Como o autor bem explicita, na obra de Boaventura não se encontra o termo “ecologia”, que não pertencia ao horizonte teológico-espiritual da Idade Média. Porém, detalha, “cremos que não estamos pecando de anacronismo, mas, realizando um procedimento plausível, uma vez que adotamos um método legítimo de leitura do texto, aquele hermenêutico, segundo o qual, uma vez salvaguardadas as diferenças de contextos históricos, teológicos e existenciais nos quais um texto surgiu, a intencionalidade do seu leitor pode dialogar com aquela do seu autor”. Certamente, diante da desafiadora realidade proposta pela crise ambiental, e diante das iluminadas su- gestões do papa Francisco sobre o tema, é legítimo, urgente e oportuno nos debruçarmos sobre uma “espiritualidade ecológica”.

Uma das mais sérias crises em que estamos mergulhados nestas primeiras décadas do século XXI é a crise ecológica. As causas de tal crise são inúmeras e complexas, mas passam também pelo modo como o ser humano se relaciona com as criaturas, com os bens, com os outros. Poderíamos afirmar que, antes de ser fruto do descaso com a natureza e as criaturas, é fruto de um modo próprio de se conceber o lugar do ser humano no mundo. Em maio de 2015, o papa Francisco lançou a Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. O professor Breno Herrera da Silva Coelho, ecólogo, profundamente envolvido na área da educação e preservação ambiental, nos apresenta uma sistematização desta Encíclica, a partir de quatro perspectivas centrais que a perpassam: espiritualidade franciscana, envolvimento ecumênico, crítica ao capitalismo predatório e ênfase na responsabilidade humana. Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” (53), insiste na urgência de despertarmos para o cuidado da casa comum: “Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque ‘a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito’. Se nos detivermos na super- fície, pode parecer ‘que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido’”.

Rafael van Erven Ludolf, ativista na defesa dos direitos dos animais, membro do Grupo Espírita Servidores de Jesus, nos oferece uma reflexão sobre a comunicação não violenta. Inspirando-se no encontro de Francisco de Assis com o sultão Malik al-Kamil, oitocentos anos atrás, e fazendo uma relação com as propostas da comunicação não-violenta, estruturada pelo psicólogo Marshall Rosenberg, Rafael sugere que nos empenhemos na construção de uma comunicação que “leva os seres a se entregarem de coração e a se conectarem a si mesmos e aos outros de maneira tal que permite que a compaixão natural floresça, que o diálogo para a paz e a cultura do encontro aconteça”. Certamente este é o melhor antídoto às fake news que brotam por toda parte, criando divisões, alimentando o ódio e a intolerância.

A crise de autoridade é uma realidade constatada em todos os setores. É cada vez mais raro encontrar verdadeiros líderes, que sejam capazes de motivar e entusiasmar seus seguidores pela autoridade e exemplo de vida. Nesse sentido, Miguel Kleinhans nos oferece uma pertinente reflexão sobre a espiritualidade do serviço desinteressado, caritativo e fraterno, visando, sobretudo o bem do outro. O autor faz uma interessante análise da relação entre a autoridade, o poder e o serviço, especificamente na vida das irmãs Clarissas, de clausura. A análise das relações de poder neste peculiar e plurissecular estilo de vida, serve de inspiração para a construção de relações positivas e construtivas entre poder e autoridade em tantos outros ambientes, onde se tem como referência a busca do bem comum. Como ilustra Kleinhans: “os princípios de liderança baseados na espiritualidade francisclariana são antigos e, ao mesmo tempo, inovadores e revigorantes. O poder, para ser bem exercido, exige o sensível e delicado equilíbrio entre a ‘autoridade’ e o ‘serviço’”.

No artigo Sinodalidade: escuta e comunhão na vida e missão da Igreja, Adenilson Tadeu Quirino se debruça sobre o tema em questão, a partir do pensamento do papa Francisco, na perspectiva da escuta  e da comunhão. Como afirma Adenilson, o Pontífice tem insistido “na importância de uma Igreja que seja capaz de sair de si mesma para ir ao encontro das pessoas, que esteja disposta a caminhar lado a lado com os homens e mulheres de nosso tempo, que se adestre na arte   da escuta, que procure estreitar laços e ser promotora de comunhão”.

Caminhar juntos, escutar, estreitar laços, são todas expressões que remetem à urgência de relações mais humanas e humanizadoras, num tempo marcado pelo individualismo dos meios virtuais, pela fluidez das relações, quando não conseguimos nos desgrudar da tela do celular, incapazes de reconhecer o irmão que caminha ao nosso lado, ou de nos compadecermos de quem sofre perto de nós.

“Campanha da Fraternidade 2020: Cuidar da vida, cultivando a compaixão”, é o título da reflexão de Henrique Cristiano José Matos, a partir de uma releitura do texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano. Inspirados pelo testemunho de vida de Santa Dulce dos pobres, e pela ternura e compaixão que brotam da leitura da parábola do Samaritano, somos convidados ao exercício de olhar, interiorizar, cuidar da vida, como valor definitivo e último. Só assim poderemos “reconstruir a história, aquecer o coração desesperado, iluminar quem está na escuridão, abrir os braços a quem precisa de carinho e atenção, fazer-se presente onde ninguém deseja ou quer ficar” [Texto-base, 136].

As reflexões apresentadas neste número da Grande Sinal buscam, cada uma em sua especificidade, oferecer pistas para a vivência de uma espiritualidade encarnada em nosso tempo. São tantos e urgentes os desafios, os questionamentos, as transformações que nos sur- preendem a cada dia. Diante das mudanças, podemos ser atingidos pelo “vírus” da acomodação, ou do desespero, ou da paralisia. Mas tam- bém são muitas e imensas as possibilidades escondidas, que podem ser desveladas e trazidas à luz. O importante é o empenho de cada um na busca de respostas e possibilidades para uma vida espiritual autêntica e original, com empenho e confiança. As reflexões apresentadas nesta edição, são apenas algumas indicações, dentre tantas outras possíveis, oferecidas com carinho por nossos colaboradores. Que elas possam ser lume a indicar o caminho, para que possamos seguir em frente, com entusiasmo e audácia, sem perder a esperança. Boa leitura!

Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

Redator

Publicado: 2020-04-09